18 novembro, 2008

Calligaris entrevistado - Fronteiras do Pensamento



Somos a história que compomos
Cultura - O senhor poderia antecipar um pouco o tema de sua conferência no ciclo Fronteiras do Pensamento?

Contardo Calligaris - Vou tentar falar sobre o fato de que nossa subjetividade é fundamentalmente uma história, a história que nós contamos a nós mesmos, a história da nossa vida, digamos assim, e a história que contamos aos outros como sendo a nossa, eventualmente a que os outros nos contam como sendo a nossa e que no fundo é uma história só. E uma história que é construída de maneira sempre dinâmica.

Cultura - Algo que se poderia definir como "a vida como criação de uma narrativa?"

Calligaris - Sim, seria a vida como criação de uma narrativa e, portanto, regrada muito mais por uma necessidade estética do que ética. A idéia atual é que somos fundamentalmente uma história que vamos compondo a partir do que acontece, mas também a partir das várias histórias com as quais cruzamos ao longo da nossa vida - as contadas por outros, as que lemos ou às quais assistimos e que constituem um imenso patrimônio das histórias possíveis. Somos essa história em progresso, uma maneira de traduzir a expressão "in the making", algo que vai se fazendo. E isso é um traço dito "específico da modernidade", o que é verdade apenas para os últimos 250 anos, e mesmo assim na cultura ocidental. Então, no fundo, contrariamente ao que pensamos, o que nos dirige na invenção da nossa vida é muito mais um misterioso princípio estético do que os princípio éticos que nos orientam ou que lamentamos que não nos orientam. Porque os princípios éticos só entram em jogo na construção da nossa vida porque colaboram enquanto elemento de uma poética de nossa vida.

Cultura - Por esse viés, seria essa uma das explicações para a atual cultura ser pautada pela aparência, pela superfície, mesmo pela onipresença do entretenimento como valor na cultura?

Calligaris - Sim. Na medida em que essa narrativa é equivalente às narrativas em gerais, sejam verbais, sejam visuais, sejam uma mistura de ambas, o que é mais freqüente. Ela faz parte consistente do que a gente chama de entretenimento. Seria muito interessante se fosse verdade plenamente e que nós conseguíssemos nos construir em uma atividade que de alguma forma faz parte do jogo, e portanto do entretenimento. Nesse sentido, a gente pode pensar que uma boa poética da vida é também uma boa arte de viver.

ZH - Um intelectual norte-americano chamado Neal Gabler escreveu um livro chamado Vida: o Filme, em que propõe algo semelhante: que o cinema e a TV forjam na vida contemporânea essa necessidade de pensar uma biografia em termos narrativos. O senhor partilha desse ponto de vista?

Calligaris - Conheço o livro, mas tenho algumas reservas. Concordo plenamente que o cinema transformou nossa poética da vida. Para começar, transformou completamente nossa relação com a leitura. Não somos hoje os mesmos leitores que poderíamos ter sido há cem anos. Porque o audiovisual mudou nossas escolhas de leitura e mudou também a maneira de contar histórias. Mas minha objeção ao livro é que, quando se diz que a nossa tendência a pensar a vida como narrativa começa no cinema, a gente esquece da imensa popularidade das narrativas literárias no século 19 e no começo do século 20. Esquece a importância do folhetim diário no século 19, quantos romances foram escritos em folhetim de jornal, hoje isso sumiu, mas era freqüente. Esquece a popularidade do que nos Estados Unidos se chamavam "romances de 10 centavos", uma narrativa de cordel em prosa que se vendia nas esquinas dos mercados. A gente esquece que o western, histórias de bangue-bangue, como se chamavam aqui, muito antes de ser um gênero cinematográfico, foi um gênero popular de romances baratos, que se vendia a números absolutamente extraordinários.

Cultura - O cinema mudou nossa relação com a leitura e a própria produção. Os livros são mais curtos e diretos, na média. Há pouco tempo hoje para leitura?

Calligaris - Além disso, que também é uma questão, acho que o cinema também nos acostumou a percorrer uma narrativa de forma completa em um intervalo de tempo muito limitado, em uma hora e meia, duas horas, e isso mudou nossa capacidade de ler. Como posso dizer? Para a maioria dos leitores contemporâneos, a primeira parte de Os Sertões, A Terra, é ilegível. Mas é ilegível porque um travelling de dois minutos em cima da caatinga nos diz de alguma forma as mesmas coisas. Então, quando a gente começa a ler, já está vendo aquilo na cabeça e está ansioso para passar ao próximo capítulo.

Cultura - O cinema, a publicidade, a televisão criaram um banco de imagens icônicas universais que todos mais ou menos compartilham. Isso não acabou também por criar uma pressão por ir direto ao ponto, um conformismo com o estereótipo?

Calligaris - Em geral o que aconteceu, sem dúvida, foi que o leitor médio de hoje, com algumas exceções, gosta de uma narrativa mais rápida, inclusive em termos cinematográficos. Começa a ver um filme iraniano ou francês e fica pensando: "Vamos lá, o que vai acontecer? Por que tanto silêncio?". E o leitor ainda mais. É especialmente intolerante a longas descrições geográficas. Mas eu não acho que isso seja um problema, que a gente tenha de olhar para isso com uma espécie de nostalgia, como se estivéssemos perdendo alguma coisa.

Cultura - Há um entendimento generalizado de que o ser humano hoje sente mais agudamente a solidão de seus tempos. Isso também se deve à dissociação entre a narrativa de cada um e a narrativa alheia? Ou a narrativa que alguém apresenta de si e a que os outros lêem dele?

Calligaris - Isso é verdade, mas é verdade também que existem conexões, claro, muito menos do que quando a gente se queixa da falta de grandes ideais coletivos. No fundo, traduzido nos termos do que estou tentando dizer, existem cada vez menos, aparentemente, grandes narrativas coletivas das quais a nossa faria parte. A narrativa do progressivo triunfo do proletariado não tem mais valor como narrativa coletiva. É uma outra maneira de dizer que os grandes ideais do século 20 estão no mínimo sonolentos, se não feridos, senão ainda mortos. Mas acho que a gente não pára de inventar, apesar de tudo, narrativas coletivas. Talvez elas não tenham o mesmo caráter universal, aquele sentido de que a narrativa de cada um poderia encontrar seu lugar em uma espécie de História do Mundo, o que é um sonho do fim do século 18 que prossegue pelo século 19 inteiro e um bom pedaço do 20. Isso provavelmente acabou. Mas eu não seria tão pessimista. Me parece que as narrativas coletivas se fazem e se desfazem talvez com a mesma leveza com a qual podemos ser capazes de fazer e desfazer a própria narrativa de nossa vida. Porque o interessante em uma narrativa, sobretudo do ponto de vista de alguém como eu, que sou psicoterapeuta, é que, de alguma forma, ela pode ser desfeita e refeita. É um dos grandes caminhos da mudança subjetiva.

Fonte: Caderno Cultura, ZH - 02 de agosto de 2008

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