12 julho, 2009

A Minha Felicidade Não é a Sua, por Martha Medeiros



A Minha Felicidade Não é a Sua

Martha Medeiros
Revista O GLOBO, 16/01/2005


O mais recente livro de Carlos Moraes, o ótimo "Agora Deus vai te pegar lá fora", há um trecho em que uma mulher ouve a seguinte pergunta de um major: "Por que você não é feliz como todo mundo?" A que ela responde mais ou menos assim: "Como o senhor ousa dizer que não sou feliz? O que o senhor sabe do que eu digo para o meu marido depois do amor? E do que eu sinto quando ouço Vivaldi? E do que eu rio com meu filho? E por que mundos viajo quando leio Murilo Mendes? A sua felicidade, que eu respeito, não é a minha, major."

E assim é. Temos a pretensão de decretar quem é feliz ou infeliz de acordo com nossa ótica particular, como se felicidade fosse algo que pudesse ser visualizado. Somos apresentados a alguém com olheiras profundas e imediatamente passamos a lamentar suas prováveis noites insones causadas por problemas tortuosos. Ou alguém faz uma queixa infantil da esposa e rapidamente decretamos que é um fracassado no amor, que seu casamento deve ser um inferno, pobre sujeito. É nestas horas que junto a ponta dos cinco dedos da mão e sacudo-a no ar, feito uma italiana indignada: mas que sabemos nós da vida dos outros, catzo?

Nossos momentos felizes se dão, quase todos, na intimidade, quando ninguém está nos vendo. 0 barulho da chave da porta, de madrugada, trazendo um adolescente de volta pra casa. O cálice de vinho oferecido por uma amiga com quem acabamos de fazer as pazes. Sentar-se no cinema, sozinho, para assistir ao filme tão esperado. Depois de anos com o coração em marcha lenta, rever um ex-amor e descobrir que ainda é capaz de sentir palpitações. Os acordos secretos que temos com filhos, netos, amigos. A emoção provocada por uma frase de um livro. A felicidade de uma cura. E a infelicidade aceita como parte do jogo — ninguém é tão feliz quanto aquele que lida bem com suas precariedades.

O que sei eu sobre aquele que parece radiante e aquela outra que parece à beira do suicídio? Eles podem parecer o que for e eu seguirei sem saber de nada, sem saber de onde eles extraem prazer e dor, como administram seus azedumes e seus êxtases, e muito menos por quanto anda a cotação de felicidade em suas vidas. Costumamos julgar roupas, comportamento, caráter — juizes indefectíveis que somos da vida alheia — mas é um atrevimento nos outorgar o direito de reconhecer, apenas pelas aparências, quem sofre e quem está em paz.

A sua felicidade não é a minha, e a minha não é a de ninguém. Não se sabe nunca o que emociona intimamente uma pessoa, a que ela recorre para conquistar serenidade, em quais pensamentos se ampara quando quer descansar do mundo, o quanto de energia coloca no que faz, e no que ela é capaz de desfazer para manter-se sã. Toda felicidade é construída por emoções secretas. Podem até comentar sobre nós, mas nos capturar, só com a nossa permissão.



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Nesse belo artigo, Martha ilumina a ruptura que se faz necessária para não cairmos na vala comum dos julgamentos generalizantes, fundamentados em leis do imaginário instituido.
Sair desse fundamentalismo que tem a pretensão de saber acerca dos sentimentos do outro, mais e melhor do que ele próprio, é um dos desafios para quem quer relacionar-se minimamente bem abrindo mão do controle e da primazia ditatorial do pré-julgamento.

A captura, no entanto, se dá, me parece, através de mecanismos nem sempre tão visíveis e evidentes, assim como nem sempre se dá com a permissão... nossa!
A própria Martha, que considero possuir "olhares" lúcidos (isto é um "julgamento") também sucumbe, como cada um de nós, à captura. Detenho-me exclusivamente ao último parágrafo: a expressão "Não se sabe nunca o que emociona intimamente uma pessoa..." já evidencia uma captura e um julgamento: nunca é uma palavra muito gorda e definitiva(!) que também coloca as coisas como definitivas. Ora, se a minha felicidade não é a sua e vice-versa, como se pode dizer que nunca se sabe o que emociona intimamente uma pessoa?

Igualmente a frase " Toda felicidade é construída por emoções secretas" acusa a captura pelas generalidades totalizantes. Claro que há felicidades construídas por n emoções nada secretas; pelo contrário, partilhadas, compartilhadas, percebíveis por sensibilidades não usuais e até mesmo comunicadas explicitamente.

Podemos saber sim o que emociona uma pessoas, duas, três até mais... mas, para isso, necessitamos de intimidade.
Intimidade para conhecer, entrar, sentar e deitar na vida interna do outro.

Intimidade essa... que está presente nas relações amorosas e saudáveis e, também, nas relações de sedução, manipuladoras e anti-sociais.

No primeiro desses casos existe entrega e permissão à essa entrada... talvez, arrisco-me a dizer, até desejo de que assim aconteça. Ok. Talvez seja dessa captura que Martha tenha escrito.
No segundo caso... as coisas se complicam... porque pode haver desejo de intimidade somente de um dos envolvidos.. e também há a entrega e o convite à entrada: instância em que se dá a captura-prisão, da qual é muito difícil escapar, já que as intenções são vampirescas!

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