11 dezembro, 2010

Fernando Pessoa e Jung sobre o uso das técnicas e tocar a alma, sobre estar sozinho e a loucura




Álvaro de Campos
Lisbon Revisited
(l923)
 
NÃO: Não quero nada. 
Já disse que não quero nada. 
Não me venham com conclusões! 
A única conclusão é morrer. 

Não me tragam estéticas! 
Não me falem em moral! 

Tirem-me daqui a metafísica! 
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas 
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) — 
Das ciências, das artes, da civilização moderna! 

Que mal fiz eu aos deuses todos? 
Se têm a verdade, guardem-na! 
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. 
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. 
Com todo o direito a sê-lo, ouviram? 

Não me macem, por amor de Deus! 
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? 
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? 
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. 
Assim, como sou, tenham paciência! 

Vão para o diabo sem mim, 
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! 
Para que havemos de ir juntos? 
Não me peguem no braço! 
Não gosto que me peguem no braço.  Quero ser sozinho.  
Já disse que sou sozinho! 
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia! 

Ó céu azul — o mesmo da minha infância — 
Eterna verdade vazia e perfeita!  
Ó macio Tejo ancestral e mudo, 
Pequena verdade onde o céu se reflete! 
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje! 
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta. 

Deixem-me em paz!  Não tardo, que eu nunca tardo... 
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!




Conheça todas as teorias,
domine todas as técnicas,
mas quando tocares uma alma humana,
seja apenas outra alma humana.


= Carl Gustav Jung =



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Os profissionais de todos os tipos e graduações 
esquecem que JUNTO com quem lhes demanda um serviço, 
está um ser humano que não necessita só
do serviço, precisa, também, estar acolhido nas suas
necessidades de ser humano:
alguém que sente, pensa, raciocina, vê, e intui.
Um cidadão no pleno gozo dos seus direitos.


Basta pensarmos nos serviços de call center, onde
o consumidor vira uma ameba, uma planária, 
com sistema nervoso rudimentar, e não consegue raciocinar
tamanho o fechamento e ausência de sentimento humano 
e falta completa de raciocínio crítico 
do profissional que vem lhe oferecer o produto.
Imobilizado na impessoalidade de raciocínio do próprio trabalho que executa,
o profissional acaba "formando" um ar de tamanha 
impossibilidade de pensamento que, ambos, acabam por fazer uma
conversa de surdos. 
Um espanto.


Mas não só nesses profissionais que a impessoalidade opera
e o uso da técnica como repetição compulsiva e "sem penso" se instala.
Também nos médicos que dão sua consulta em dez minutos
e só pedem exame e nem olham para os "pacientes".


Também nos recepcionistas de todos os tipos
( um dia presenciei um deles perguntando a um jovem adulto 
se o atendimento no caixa era comum ou especial, para mais de 65 anos. 
Ele perguntou isso OLHANDO para o cliente do banco. 
Olhando sem ver. Cego de repetição. Um burocrata do atendimento.)
e atendentes de "pessoal" (aqui esse termo pode ser usado como
sinônimo de "manada") que ficam completamente emburrecidos
na sua ânsia de executar suas atividades profissionais.


Também com Psicólogos, que dão seus diagnósticos 
e se sentem e comportam como se fossem 
um exemplo de comportamento e saúde mental,
mantendo um espécie de carranca humana inafetável
- uma máscara de profissionalismo técnico.


Também com engenheiros, arquitetos, advogados e
enfermeiros vemos essas materializações inumanas de atendimento.
Presos na técnica, enredados nos números e desejosos 
de "mostrar saber" e competência... 
perpetuam um estado das coisas onde o que está entre e é comum a ambos... 
se perde: sua humanidade, a alma, o pessoal, a diferença.

Também vemos isso nos prestadores de serviços gerais, faxineiras e pedreiros.
Entregadores de gás, motoristas e cobradores de ônibus.
Vemos nos caixas de banco, nos operadores da bolsa de valores e nos 
funcionários públicos de todos os tipos, bem como nas eletricistas,
encanadores, lixeiros, atendentes de balcão e marketeiros.

Com todos os avanços e conquistas adquiridos pelas leis 
e pelos movimentos sociais de proteção ao consumidor,
ainda o que predomina é o uso da técnica-pela-técnica.

No outro lado disso, estão aqueles profissionais que, 
movidos por treinamentos "humanizantes" 
e de respeito ao cliente, desempenham seu papel como bobos da corte. 
Pessoas que são instruídas num verdadeiro mecanismo de lavagem 
cerebral para se tornarem amigos e - imediatamente - íntimos dos clientes.
Vão pegando no braço, sorrindo seu sorriso amarelo-congelado e, pior, 
tocando com a mão o joelho ou a nossa perna. Um nojo.

Num extremo, os técnicos sisudos e impessoais. 
No outro, os profissionais humano-demasiado-humanos.
Duas maneiras diferentes de cometer excessos. 
Por um lado, frio demais; por outro, calor demais. 
Quem perde é a densidade do ar que ambos respiram, a atmosfera
que poderia se criar se algo diferente disso fosse feito.
É preciso ser louco, ter a sua loucura para que isso aconteça.
O Dr. House é um exemplo disso.
Ele aposta no ineditismo e no inusitado.
Põe "sua loucura" a ver e manda firme.

O mais comum, no entanto, é a coexistência de duas variações do mesmo problema:
a) incompetência para gerir a própria existência 
e, b) incompetência para inventar maneiras de viver e fazer da sua própria vida 
uma estratégia  de diferenciação dessas formas bitoladas e bitolantes 
de existir, tanto pessoal como profissional.

Ainda bem que há exceções.

Os textos que dão nome a essa postagem são bem claros
no que se refere à diferença que se produz quando 
somos atendidos por técnicos que efetivamente conseguem 
unir seu saber-fazer ao aspecto humano e social de seu ofício, 
o qual está em imanência com a própria relação que se estabelece
entre os envolvidos e nela está baseada.

Aqui a ênfase é estar sozinho na própria diferença.
Colocá-la, 
explicitá-la, 
manifestá-la, 
pô-la em evidência e, 
através dessa busca e afirmação da singularidade, 
sair de uma situação inoperante 
e instituir um bom encontro,
potencializador de uma outra maneira de se relacionar
consigo próprio e com o outro.

3 comentários:

Cerikky.. Cesar Ricardo Koefender disse...

A recusa é a de sucumbir às instituições e ao que elas têm de mais prisional, buscando na solitude - e não na solidão - uma forma de "ser-um-si-próprio, ou seja, buscar referências para instituir um processo de diferenciação desse estado das coisas.

Ele diz não ao casamento como instituição reguladora da identidade; diz não à falsa simpatia e interesse em ajudar; diz não ao consumismo de formas de viver engessadas e fúteis; diz não à companhia que lhe é desagradável;
diz não para enaltecer a própria diferença (constituída ou em processos de constituição). enfim, diz não para todas as forças que arrastam para baixo, para o negativo, para a pressão por definição.

Dizer não às ciências, à civilização moderna, à metafísica... é uma maneira de por
à prova seu poder de enrijecimento das formas de viver; é apostar que novos e outros mundos são possíveis nesse mundo.

Ou seja, o poema é uma "apologia" da potência transformadora e não o contrário, ou seja, a identificação de freguesas e impotências derivadas do esgotamento.

O vazio, se tem algum, não é o da falta, mas o vazio produzido pelo excesso de ... regras, instituições, mandatos, rituais sociais, saberes e ciências que acham ter descoberto todas as verdades ou, ainda pior, A Verdade.

Kátia disse...

Inventar uma maneira criativa de viver, desmedicalizando a vida, não é? Tornar refém às bulas, sabota totalmente a capacidade do ser pensante que somos.


O vazio... Além dos excessos citados por você, acho também que é 'o espaço interior' não preenchido pela reflexão. Refletir sempre nos leva a um patamar, num nível muito exclusivo. Passamos longe do senso comum, várias vezes. Hahahahahahahaha, e até podemos ser chamados de loucos pelo devir-minoritário.Não importa!
.

Cerikky.. Cesar Ricardo Koefender disse...

O devir minoritário, ou os devires sociais, não nos chama de loucos, mas "nos faz sê-lo".

É uma loucura quase-sempre-sadia... kkk... que não é NOSSA, mas PASSA por nós... nos atravessa transversalmente... e nos possibilitá expressá-lo... expressá-los.