03 dezembro, 2010

"A prece" de Clarice Lispector, ou sobre pensar, as perguntas, o silêncio e as respostas




Meu Deus me dê a coragem de viver trezentos 
e sessenta e cinco dias e noites, 
todos vazios de tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio como plenitude.
Faça com que eu seja a tua amante humilde,
entrelaçada a ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo e receber como resposta 
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de te amar, 
sem odiar as tuas ofensas 
à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim 
me sentir como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços o meu pecado de pensar.

(Clarice Lispector)

 
É claro que pensar é um pecado.
E, para muitos, dos mais imperdoáveis, principalmente 
quando as perguntas vêm seguidas e acompanhadas de algumas afirmações.
É sabido que perguntas geram perguntas 
e perguntas geram respostas, as quais, novamente, geram perguntas,
numa infindável busca de apreensão da realidade e do conhecimento.
Algumas vezes, as perguntas - e as respostas - produzem sabedoria.
A sabedoria pode vir ou não acompanhada do silêncio.
O silêncio é um gestor de perguntas, mais do que de respostas.
As respostas, é claro, também surgem dos silêncios ativos.

O que é um silêncio passivo?
No plano psicológico, é uma resposta reativa ao choque que as perguntas
desencadearam por desestabilizarem idéias preconcebidas 
e maneiras de sentir e se comportar fortemente arraigadas.
É um silêncio tenso, por vezes agressivo e omisso, que comunica
inabilidade de falar e ausência de vontade de enfrentar os acontecimentos
que possibilitaram a emergência das perguntas desconstrutoras 
"das coisas da vida" e instituíram "a vida das coisas".

O que é um silêncio ativo?
É aquele que afeta os processos de pensamento 
e as maneiras de sentir para produzir diferença.
Uma ruptura com os modos de agir predominantes e viciados 
que se caracteriza por uma importante e aguda necessidade de 
retomar assuntos pendentes desde uma perspectiva construtora de inéditos.

Ambos os silêncios estão atravessados pelo tempo. E pelo espaço.
Geralmente o silêncio ativo é mais longo e, o ativo, mais curto.
Assim, conclui-se que longos silêncios passivos são sintomas de fobia,
ou seja, há um obstinada e teimosa tentativa 
de evitar - atitude de evitação fóbica - 
as possibilidades de mudanças que estavam se engendrando... 
com as perguntas... que foram realizadas 
antes do silêncio como resposta.

E o espaço, onde entra nisso?
Quando o tempo é muito longo, o espaço se dilui. Acaba.
No mundo acelerado no qual vivemos, "os sujeitos sem pausa", no desespero, 
quando forçados a isso pela realidade-que-sempre-se-impõe - 
acabam fazendo silêncios longos demais e, assim, perdem-se no tempo
e acabam por, matar junto com ele, o espaço.
Uma triste realidade que produz rompimentos até mesmo 
nos vínculos mais estáveis, 
amorosos, de companheirismo e
com grandes doses de afinidades.
Até mesmo casamentos - e amizades - são 
desfeitos dessa maneira.

Tempos diferentes para pessoas e situações diferentes.
Sim, mas, sendo diferentes, nem sempre são conciliáveis.
Importante atentar - estar sob atenção - para isso, pois, do
contrário, as coisas da vida facilmente 
se transformam em vida das coisas. 

As vezes o silêncio é a melhor resposta?
Sim, desde que não esteja acompanhado de rancores profundos, 
desidealizações, desmitificações - de mito - e orgulho.

 E as respostas?
São fundamentais.

É minha opinião que certamente Deus recebe em seus braços
o pecado de pensar... e o perdoa, quando não... o estimula!

Pertinentes:
O que você está comunicando para si próprio com esse silêncio?
O que está comunicando ao outro?
É e são as mesmas coisas? Do mesmo jeito?
Em tempos e espaços semelhantes?
Quais perguntas lhe travam?
Como o (a) afetam?

O silêncio ativo é uma grande companhia para a solidão
porque nele há vida, processualidade, 
trabalho de auto-re-(desre))conhecimento.

Pensar dói. Mas não pensar dói mais.
Será?

Nota: 
Aqui pensar nada tem a ver com 
a "masturbação mental" infrutífera
e despotencializante que gera inércia 
e que está presente nos processos obsessivos.
Aqui refiro-me ao pensamento que gera pesquisa 
e busca de respostas  - e novas perguntas! - acerca
do supostamente óbvio 
(tido como óbvio e inquestionável e naturalizado)
na tentativa de extrair dele (do "óbvio") 
aquilo que ele tem de inédito e inusitado.
Uma dança constante de transformação 
dos modus operandis de ser. 
É um estímulo à desconstrução-que-se-faz-construção.

Será que Deus considera pecado pensar?

Nota 2:

A maioria das pessoas nem cogita de se fazer algumas perguntas.
Nem ao outro.
As respostas poderiam desestabilizar demais 
e, por isso, entrar na rota-de-fuga fóbica se torna
"mais fácil". Bem mais fácil.

Será que eu estou sendo manipulado pelo outro?
Será que eu o (a) estou manipulando?
Estarei "optando" por esse silêncio para
poupar o outro da minha discordância, raiva, frustração?
Será que estou acolhendo os sentimentos do outro
mesmo com as perguntas que ele me faz?
Ou que faço, esperando que ele saiba e possa responder?
Será que amo ou sinto atração?
Será que amo o meu desejo ou o desejo do outro?
Será que amo (o outro) ou a imagem que criei dele? 
Ambos?


Estou "começando a pensar" que Deus 
não considera pecado pensar.
Se o fizesse 
porque nos daria 
a faculdade de desenvolver o raciocínio crítico 
e a possibilidade de experimentar percepções críticas?

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