09 maio, 2011

Drummond, Nietzsche e Espinosa: afetos alegres, tristes e a razão.






O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede.
Nada espera,mas do destino vão nega a sentença.
O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.
Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.
Mais ardente, mais pobre de esperança.
Mais triste?
Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.


Carlos Drummond de Andrade 





Drummond fala num amor que lembra paixão.
Ele fala num sentimento que parece
resistir ao tempo, a tudo e a todos e
se manter inviolável e inalterado.
E possível isso? O que é isso?
É amor? É paixão?
É amor-paixão.
É paixão-amor?
É paixão triste?

Que afeto é esse?


Nietzsche, Espinosa e Psicanálise. 
Como o senhor chegou a essa união? Como e por que direcionou seus estudos neste sentido?
André Martins Fiz doutorado em Filosofia na França, com o Clément Rosset, que é um grande filósofo e muito irreverente. Cheguei para fazer o doutorado e assistia a todas as aulas dele, que tinham as salas lotadas. Uma das disciplinas foi Teoria Psicanalítica, no curso de Filosofia. Foi aí que comecei a me interessar por Psicanálise, a comprar livros e a ler bastante. Paralelamente a isso, meu interesse sempre foi Nietzsche - também Deleuze e Foucault - e depois Espinosa, que chegou de forma arrasadora na minha vida e me conquistou. São autores que estão pensando o mundo sensível e de alguma forma as reações afetivas. É um tema próximo da Psicanálise. Por me interessar por esses autores, por uma filosofia imanente e não transcendente, por uma filosofia que pensa a vida, acabei me deparando com a questão dos afetos. E, a partir daí, fui também estudar Psicanálise, mas dentro desse percurso individual. Ao chegar ao Brasil, fiz um segundo doutorado em Teoria Psicanalítica e sou membro de sociedades psicanalíticas no Brasil e na França. Aí tudo começou a fazer sentido, a se juntar.



Nietzsche e Espinosa foram incompreendidos em vida e tidos como malditos ao longo da história da Filosofia. Além deste perfil em comum, o que mais aproxima esses dois filósofos?
Martins O que os aproxima é o que está na origem do fato de eles terem sido incompreendidos e malditos. As filosofias de um e de outro têm pontos comuns que sempre foram polêmicos, pouco aceitos. O próprio Nietzsche me ajuda a responder a essa pergunta porque, em um cartão-postal que escreveu a um amigo, falou que se reencontra em Espinosa em cinco pontos capitais e também na tendência geral de sua filosofia. Ambos tomam o conhecimento como o mais potente dos afetos. O conhecimento ser visto como um afeto é algo completamente diferente da tradição filosófica. E é dito como sendo o afeto mais potente. O conhecimento, neste caso, tanto para Nietzsche quanto para Espinosa, é o conhecimento não só da realidade como dos próprios afetos. Se conhecemos a maneira como somos afetados, como funcionamos - nossas reações e motivações afetivas -, esse conhecimento é o que mais tem poder sobre os nossos afetos e, portanto, sobre as nossas ações. A tradição filosófica sempre buscou uma verdade a priori, ou seja, uma verdade em si ou formalmente verdadeira. Tanto Espinosa, no século XVII, quanto Nietzsche, no século XIX, tentam mostrar que uma verdade formal não existe. Segundo eles, nós só existimos no mundo sensível, na realidade, então a verdade consiste em conhecer esse mundo no qual a gente se insere e não conhecer uma verdade que seja formalmente impassível ou imutável. Esse é o grande ponto em comum entre eles, a tendência geral da filosofia dos dois que os distingue de toda a história da Filosofia.



E quais são os cinco pontos em comum entre os dois enumerados por Nietzsche?
Martins São eles: a não existência do livre-arbítrio; a não existência do mal - e subentende-se, portanto, que não existe também o bem; a não existência de causas finais, ou seja, de que algo existe no mundo porque tem uma finalidade - por exemplo: Deus criou a fruta para alimentar o homem, ou uma dificuldade para que o homem aprenda a superá-la; a não existência do desinteresse - não existe desinteresse, existem ações interessadas interesseiras e ações interessadas não interesseiras, mas sempre existe o interesse e, por fim, o quinto ponto é a negação da ordem moral do mundo: Nietzsche e Espinosa negavam a existência de um sentido moral intrínseco às próprias coisas, aos acontecimentos, à existência. Acho que Nietzsche foi muito feliz em perceber que esses cinco pontos, que são os pilares da tradição filosófica de toda a história da Filosofia, em particular da Modernidade e do Humanismo, são falhos, não existem, são ficções. Nietzsche foi muito preciso em ver que Espinosa já denunciava esses pontos na aurora da Modernidade.


Falamos sobre os pontos em comum. E fazendo o oposto, qual seria o maior ponto de atrito e de divergência entre eles?
Martins Diria que a principal diferença é de foco ou de tonalidade. Nietzsche é extremamente passional no jeito de escrever - na vida pessoal nem tanto, era uma pessoa serena, calma, apaziguadora, mas nos textos é muito passional e provocativo: "sou dinamite", "filosofar com o martelo". Espinosa, por oposição, não só no texto quanto na própria filosofia e, ao que parece, razoavelmente na própria vida pessoal, propõe um controle, um domínio sobre as paixões. Vejo que ambos têm filosofias distintas, porém muito próximas em pontos fundamentais. Nietzsche seria uma versão mais passional, mais apaixonada de um fazer filosófico. Espinosa seria uma versão mais sóbria ou racional desse mesmo fundo filosófico.intensificação das paixões alegres e das alegrias ativas. Quando Nietzsche fala do engajamento apaixonado, ele está pensando no que Espinosa chamaria de "paixões alegres". Mas o foco é diferente, Espinosa não está valorizando as paixões alegres, quer dizer, está, mas sem colocar o foco nelas. O objetivo de Espinosa são os afetos ativos, que estão para além das paixões alegres. Digamos, ter as paixões tristes é negativo para os dois, e aí viriam as paixões alegres e os afetos ativos, as alegrias ativas. Nietzsche não dá ênfase aos afetos ativos, embora eles estejam presentes também na filosofia dele. A ênfase que ele dá é - usando os termos de Espinosa - nas paixões alegres.



Nietzsche está sempre fazendo um elogio do engajamento individual da pessoa naquilo que ela faz. Ele preconiza um envolvimento apaixonado na vida, nas coisas que se faz na vida
O que seriam essas paixões alegres e tristes de Espinosa?
Martins Em Espinosa, um afeto alegre, que pode ser passivo - uma paixão alegre - ou ativo - que é sempre alegre -, é o afeto que aumenta a nossa potência de agir, de pensar, de estar no mundo, de existir. Esse é o afeto alegre: o que nos impulsiona, o que nos expande. É parecido com Nietzsche, que vai falar de uma "Vontade de Potência", que é uma vontade de expansão. O afeto triste, que é sempre passivo, ou seja, é sempre uma paixão triste, em Espinosa, é o afeto que nos oprime, que nos deprime, que vai contra a nossa potência de agir. Nietzsche vai falar contra o ressentimento, que é um afeto triste. Vai falar contra a submissão, contra seguir a moral do rebanho, contra fazer como todo mundo, que são afetos tristes. Muito embora o uso conceitual seja diferente, eles têm uma afinidade de compreensão do que são afetos. Basta pensar: em Espinosa, o afeto é um conceito central; em Nietzsche, também; e isso é raríssimo na história da Filosofia, que o conceito central de uma filosofia seja o afeto.



Afeto é uma palavra de nosso uso corrente, ligada a carinho. 
O que seria o afeto em Espinosa? 
Martins É próximo de sentimento, mas não é exatamente sentimento. Poderíamos dizer que sentimentos são afetos, mas precisamos entender afeto no sentido mais amplo. Somos afetados sempre e inevitavelmente. E esses afetos nos movem, nos motivam, mesmo que não tenhamos consciência disso. Espinosa nos mostra, bem antes da Psicanálise, que são nossos afetos que nos movem, e que a razão não pode modificá-los, a menos que ela se torne uma razão afetiva. Afeto é a reação inevitável a tudo o que nos impressiona, a tudo o que nos marca, a tudo com o qual interagimos. Sofremos afecções e essas afecções, concomitantemente - ao mesmo tempo e não em um segundo momento -, geram afetos. Afetos resultam das interações, não brotam nunca do nada em nós. Em Nietzsche, afeto, no geral, é sinônimo de paixão. Essa paixão pode ser o que Espinosa chama de uma paixão alegre. Nietzsche não faz essa distinção, mas ele está pensando o afeto próximo de paixão e próximo de pulsão - trieb, no original alemão, o mesmo termo que depois Freud vai usar. Nietzsche pensa afeto como um sinônimo de pulsão - o que é muito próximo da ideia de afeto de Espinosa. Enfim, é diferente, mas eles estão em universos conceituais muito próximos.


Falando um pouco de liberdade. Para Nietzsche e Espinosa, os homens não seriam livres em suas decisões, mas determinados. Determinados de que forma ou pelo quê?
Martins Não é bem assim. O homem pode ser livre em suas decisões, o problema é que o julgamento do homem é que não é livre de seus afetos. Para entendermos a posição dos filósofos, que neste ponto é a mesma, precisamos entender qual é a tradição à qual eles estão se opondo. A ideia do livre-arbítrio é de que o pensamento do homem, ou sua razão, existe de modo dissociado do corpo, de suas ações, do contexto cultural, histórico, social e de todas as relações humanas. É como se existisse uma razão pura, sem influências disso tudo - que seria, na tradição filosófica, a alma ou uma faculdade da alma. Ela teria o arbítrio, ou seja, o julgamento; julgaria de uma maneira isenta de tudo o que é da ordem da realidade. Esse livre-arbítrio é que é contestado tanto por Espinosa quanto por Nietzsche. Para eles, o livre-arbítrio não existe, é uma ficção. Por mais que a pessoa tente pensar de modo isento - isento da própria maneira de ver o mundo, da própria história de vida -, não é possível.



Espinosa mostra, antes da Psicanálise, que são nossos afetos que nos movem, e que a razão não pode modificá-los, a menos que se torne uma razão afetiva
Então a determinação pelos seus afetos seria por essas influências?
Martins O homem pode fazer escolhas livres. Só que essas escolhas não serão livres dos afetos, elas serão relativamente livres no sentido de que ele pode fazer opções, até mesmo racionalmente, mas se optar por algo que vá contra a natureza dele ou contra seus afetos, não vai adiantar nada, pois os seus afetos é que vão prevalecer. Optar por algo que aja sobre seus afetos, isso é o que ele pode fazer.




Mas o homem seria livre para decidir contra os afetos?
Martins Isso é o que a gente faz o tempo todo, não é? Vamos pensar em exemplos concretos: a pessoa quer parar de fumar e não consegue, quer emagrecer e não consegue, quer ser só bonzinho e não consegue. Por quê? Porque ela está na ficção do livre-arbítrio. Em outros termos, Espinosa diz que achamos que a vontade é livre, mas a vontade não é livre. Ela depende do corpo. Vivemos em uma cultura que se autoengana e, neste sentido, a história da Filosofia inteira está errada. Como se fosse possível, eficaz ou vantajoso tomar decisões contrárias ao nosso corpo e aos nossos afetos. Ou, para usar um termo de Espinosa, que é também um termo da Psicanálise, contrário ao nosso desejo. Segundo Espinosa, o desejo é a essência do homem. Então, por exemplo, se quero parar de fumar, o que eu posso fazer racionalmente? Pensar quais são as motivações que me levam a fumar, quais são os afetos que me levam a fumar e aí começar a atacar essas motivações e esses afetos e não simplesmente achar que minha vontade é livre e tentar impor essa vontade contra meu desejo humana. Espinosa e Nietzsche batem nesta tecla o tempo todo: não se pode ir contra a natureza humana. Por mais que se acredite e se iluda de que a vontade é livre, a pessoa não vai conseguir ir contra si mesma. E aí vai gerar o quê? Já misturando com a Psicanálise: vai gerar neurose, depressão, a pessoa vai entrar em crise. Não só em respeito à sexualidade como diversas outras coisas. Se estou sem fazer nada em que me sinta realizado, me expandindo, vou ficar deprimido, abatido. Não adianta uma pessoa que está com uma vida infeliz pensar que precisa ter força de vontade. E aí vêm todos os jargões, tanto da religião quanto da autoajuda, quanto da neurolinguística, de ficar repetindo "eu vou aguentar, eu vou aguentar". Você não está tendo o conhecimento como o mais potente dos afetos. Não está tentando entender o que em você faz que esteja infeliz e o que em você lhe motivaria, lhe deixaria mais realizado.
Tentando resumir: tanto para Espinosa quanto para Nietzsche, o homem pode ser livre em suas escolhas, desde que essa liberdade coincida com o afeto dele ou com o conhecimento dos afetos. Nietzsche não usa esses conceitos, de afetos ativos e passivos, paixões alegres para parar de fumar. É preciso dar uma volta. Espinosa diz que a razão, por mais que conheça uma verdade, não tem nenhum efeito contra um afeto mais forte. É preciso que ela seja afetiva para que possa transformar um afeto. Essa chave muda a história da Filosofia inteira e muda a vida de cada um, no dia a dia, conheça-se Filosofia ou não. Se entendermos que somos seres unos, corpo e alma - Espinosa muda o termo: corpo e mente -, como dois aspectos de uma coisa una que nós somos, então temos de prestar mais atenção em nossos afetos e não ficar dando murro em ponta de faca achando que a vontade pode ser livre ou que o nosso arbítrio pode ser livre. Não vamos conseguir algum efeito positivo impondo contra nós algo que não é possível. Em toda história, o que se fez, por exemplo, em relação à sexualidade? É pecado, tem de coibir, até hoje a igreja católica oprime o desejo sexual. Mas isso é da natureza e tristes, mas diz algo muito próximo. A liberdade em Nietzsche é você coincidir com você mesmo, é desejar o seu destino - fica mais vago, mas vai no mesmo sentido.


Tanto para Nietzsche quanto para Espinosa, a emoção domina a razão? Por isso os dois foram tão malvistos em um mundo dominado pela racionalidade?
Martins Não dá para dizer exatamente que eles propõem que a emoção domine a razão. Na vida real, normalmente a emoção domina a razão. Para Espinosa, é claro que isso é ruim - e isso ajuda a entender a diferença entre os dois. Para ele, a razão tem de dominar. Só que a razão de Espinosa não é a razão da tradição filosófica, é outra razão, é uma razão afetiva. Poderíamos dizer que tanto para Nietzsche quanto para Espinosa, os afetos dominam a razão. Para Espinosa, a razão deve dominar os afetos passivos, mas a própria razão é um afeto ativo. A razão é um afeto. E, em Nietzsche, a emoção deve dominar a razão, porque ele é um pensador passional. Mas aí entram todos os detalhes do pensamento de Nietzsche em que esse domínio da emoção sobre a razão também se dá junto a um elogio do conhecimento, a um elogio de certa razão. O termo que ele vai usar é de uma Gaia Ciência, de uma razão alegre.





Entrevista completa em:

Com os pés na vida real
Tendo os afetos como foco e usando para isso os pensamentos de Nietzsche, Espinosa e teorias psicanalíticas, André Martins diz que a Filosofia só é válida se puder ajudar no dia a dia das pessoas
Por Patrícia Pereira


http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/57/com-os-pes-na-vida-real-tendo-os-afetos-213469-1.asp




Um comentário:

Kátia disse...

Esta entrevista parece-me ser uma boa leitura. Que boba! Tudo aqui é bom, e é quase sempre luz. Às vezes percebo que seus posts trazem luz àquilo que a pessoa já sabe que é verdadeiro e não tem consciência. Vou ler sem pressa e com muito carinho.

Quanto as suas várias perguntas, só sei que o
A M O R verdadeiro não tem fim. E, qualquer definição que nos seja apresentada nunca nos satisfaz completamente. Sentimos que existe sempre mais alguma coisa. Talvez seja esse mesmo mistério que torna a definição do amor bastante subjetiva.

Pelo pouquinho que já li (eita curiosidade, hahahahahahaha), este foi o trecho que me seduziu: "... Ambos tomam o conhecimento como o mais potente dos afetos. O conhecimento ser visto como um afeto é algo completamente diferente da tradição filosófica. E é dito como sendo o afeto mais potente. O conhecimento, neste caso, tanto para Nietzsche quanto para Espinosa, é o conhecimento não só da realidade como dos próprios afetos. Se conhecemos a maneira como somos afetados, como funcionamos - nossas reações e motivações afetivas -, esse conhecimento é o que mais tem poder sobre os nossos afetos e, portanto, sobre as nossas ações."

Imprimindoooooooooooooooo... e ouvindo Queen, hahahahahahahahahahaha!
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