12 outubro, 2011

A invenção da infância, por Juremir Machado da Silva e sobre os processos de infantilização


A infância é uma invenção recente. O amor materno universal, instintivo e intemporal é um mito. Ideias como essas saltam das páginas de dois grandes livros, "História Social da Criança e da Família", de Philippe Ariès, um dos maiores historiadores do século XX, e "Um Amor Conquistado - O Mito do Amor Materno", da historiadora Elisabeth Badinter. Até o século XIX, as crianças eram tratadas como adultos em miniatura. Até o século XVIII, logo depois do nascimento, as crianças eram separadas das mães e criadas até certa idade por amas. Ariès e Badinter não pretenderam com seus estudos relativizar a importância da infância ou do amor materno. Buscaram mostrar que tomamos por natural, com frequência, aquilo que é cultural. Ariès diz que "um homem do século XVI ou XVII ficaria espantado com as exigências de identidade civil a que nós submetemos com naturalidade". O sobrenome é uma invenção da Idade Média. O próprio homem, como o entendemos hoje, é, conforme a fórmula consagrada pelo filósofo maior Michel Foucault, uma invenção recente, cujo fim talvez também esteja próximo.

Delírios? Bobagens? Afirmações incompreensíveis? Não. Usemos o cérebro, que é feito para isso, embora tenha cada vez menos uso, assim com o crânio nesta época sem chapéus. No passado não muito distante, homens de 30 anos ou mais casavam-se com meninas de 12 ou 13 anos de idade. Hoje, com a nova visão da infância, isso daria cadeia por pedofilia. Nunca a infância foi tão valorizada e protegida. Paradoxalmente as meninas são erotizadas precocemente. Vestem-se como adultas sexy em miniatura. A infância está, ao mesmo tempo, mais longa e mais curta. A adolescência, outra invenção recente, não para de ser alongada. O projeto de lei da meia-entrada para jovens de até 29 anos consagra no Brasil um novo limite para a entrada na idade adulta. A infância agora vai até os 17 anos. A adolescência até os 29. A idade adulta está reduzida ao intervalo dos 30 aos 59 anos de idade. Depois, começa a terceira idade. O tempo se renova. É uma pizza fatiada ao gosto dos fregueses de cada época.

O apego aos bebês nunca foi tão grande. Só comparado ao apego aos cachorros de estimação. Ao mesmo tempo, algumas mulheres sentem-se travadas na sua liberdade profissional, sexual ou existencial pelos filhos e, quando não os rejeitam, entregam-nos às novas amas, as babás, que, ao contrário de antigamente, precisam estar muito próximas, ao alcance da mão, para que a mãe possa viver instantes fugazes de intensa maternidade. Para onde vamos? Será que a idade adulta vai desaparecer? Passaremos da adolescência diretamente para a terceira idade? Quem está certo? Badinter lembra que até o grande Freud se enganou muito, pintando o homem como ativo e a mulher como "passiva, masoquista, distribuidora de amor no lar e capaz de secundar o marido com devotamento". Um bom machista do seu tempo tentando ser objetivamente científico. Badinter garante que o devotamento exclusivo e total da mulher acabou, assim como o dogma da necessidade de uma referência masculina e outra feminina para a criança. Estamos na época da divisão das tarefas e da fusão dos papéis. Confusão ou emancipação? História.

Juremir Machado da Silva | juremir@correiodopovo.com.br

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Acrescento às palavras de Juremir, que mais uma vez funcionou como porta-voz de idéias e pensamentos que tenho, uma opinião de Felix Guattari, com a qual concordo plenamente. Ele diz que as crianças não são infantis:  os adultos é que são infantis. O comportamento nas redes sociais bem o demonstram: fotos e imagens de super-heróis  remetendo à infância, uma forma de apropriação midiática que toma conta das tentativas de expressão daquilo que as crianças possuem em profusão: curiosidade, facilidade de aprendizagem, capacidade de se espantar com o novo, desejo ardente de vida e de auto-expressão, bem como intensa capacidade de resistir aos modelos e modos de comportamento exigidos pelos adultos.
Quem já não viu uma criança torcer o nariz, fazer uma careta ou francamente virar as costas para uma pessoa que lhe é completamente desconhecida ou com quem não tem a mínima intimidade como resposta a uma solicitação de um adulto de que diga oi ou dê um beijinho... no tal estranho, conhecido ou amigo do referido adulto?


Segundo Guattari, o processos de infantilização começa mesmo na tenra infância quando se decide pela criança o que e como ela deve gostar, se comportar e enfim, quando se toma as decisões dela por ela.


No que concerne aos adultos infantilizados, os processos se dão de maneira semelhante, ou seja, alguém decide por "nós" o que devemos fazer e como nos comportar: o estado, a ligação do call center que oferece sempre produtos inéditos para o nosso bem estar, qualidade de vida e segurança, os médicos e profissionais liberais e consultores de todos os tipos, os bancos e o sistema financeiro, o condomínio, as entidades de classe, o motorista de ônibus que para fora da parada e quer que venhamos ao encontro de onde ele estacionou - sem reclamar, discutir ou questionar... enfim, a lista é longa.


O que esses procedimentos que caracterizam os ditos processos de infantilização têm em comum é a tentativa de naturalizar o que não é natural, de individualizar o que é coletivo, de banalizar o que é questionável, ridicularizar o que foge à regre instituida, massificar e inscrever em referências gerais e generalizantes aquilo que é singular, ou, pior, aquilo que tenta sê-lo.
Assim, o que acontece é que o devir criança, mulher e outros devires sociais minoritários (de minorias) vão perdendo capacidade de expressão.
O devir criança, sempre é bom lembrar, nada tem a ver com imitar a criança, se vestir de criança ou se fantasiar com roupas e comportamentos assim chamados "de criança".
Supor, por exemplo, que as crianças são puras e anjinhos é tão ilusório como acreditar na existência de "caras-metade" com as quais devemos nos casar - quando as acharmos - para vivermos felizes para sempre.


Só para citar duas e bem distintas  "áreas do conhecimento", a psicanálise e o espiritismo... nos mostram e ensinam que as crianças não tem nada de anjinhos e que, decididamente não são puras.
Oh sim, elas podem estar com expressões de pureza e ostentar um ar ingênuo; podem até mesmo SER puras em algumas situações, mas, daí a generalizar... não dá, mesmo!
Mas esse ar de pureza e de ingenuidade também é visto em rostos adultos, adolescentes e idosos.
Então?
São expressões do devir e nada tem a ver com as questões da idade cronológica dita como pertencente a infância e nem com a de identidade.


Então, nesse dia da criança,   a minha "homenagem" a todos-de-qualquer-idade- que escapam, mesmo que eventualmente, aos processos de infantilização e que buscam fugir, evitar, romper, desviar de todos esses modos de padronização dos jeitos de viver a própria vida: a todos que tentam singularizar.


Cesar Ricardo Koefender

03 outubro, 2011

Bastar-se a si mesmo, a solidão e o outro




"Voar era a melhor maneira de pensar, de repensar".

..."reuniram-se no monte Meru, lá onde o cume ultrapassa os céus e se transforma na única parte do mundo que pertence ao outro mundo".

... "nada pode ser exterminado, porque tudo deixa um resíduo, e todo resíduo é um princípio...

"Bramane é quem se nutre de si mesmo".

"Assim que um pouco parece ficar claro, aparece outra questão maior, totalmente obscura".

"Indra se deteve a observá-los e foi tomado pelo riso. Estava embriagado de si mesmo".

"Pensar paralisa", pensou Garuda imóvel no céu".

"Quantos acontecimentos, quantas histórias uma dentro da outra, em cada junção nascem novas histórias..."

"Precisarei de toda a vida para começar a compreender o que vivi". 

"Compreender, entre outras coisas, o que significa eu ser feito de sílabas".

"Sabia agora que aquela solidão, que toda solidão é ilusória, habitada".

... "e então viu que a vasta diversidade de tudo o que vivia, mas sobretudo morria, podia se articular em relações que não se deterioravam"..

... "Que aquilo que me é caro possa voltar a mim... , sussurrou".

"Só a morte, que fazia parte da hereditariedade, era onipresente".

"Vivemos, certamente, na sombra e na desconexão. E certamente o que ocorre na calota de osso que é a nossa cabeça não deixa vestígios sobre a matéria dura, resistente na qual nos movemos. E é certo também que a irrealidade envolve igualmente a nós e às coisas que tocamos, como se fosse o estado normal do ser. Mas se vagamos por esta surda planura, aqui e ali encontramos pontos que vibram como vervos, certos sons que se destacam com nitidez, quase como se tivessem um significado, e de vez em quando uma emoção nos inunda, como se reconhecêssemos alguma coisa. Por que isso?"

"A areia, o silêncio, o murmúrio: são mensageiros do incomensurável".

 "Então conservava a vida com tranquilidade, sem a incumbência de fazê-la existir. Aliviava-o estar misturado aos outros deuses, confundir-se com eles. O último posto ia lhe bem. Agora a vida era um espetáculço que não dependia mais dele. Gostava de assistir a ela, mas sentia ainda todas as juntas doloridas cada vez que era tocado pela asa de um desejo".

Fragmentos de Ka, cap 1 e 2, de Roberto Galasso




- Você acha mesmo que é possível bastar-se a si mesmo?

- Já disse alguém que quem faz uma pergunta possui em si os elementos para respondê-la.

- Quero saber a SUA opinião!

- E eu a SUA! E nem me venha com esse papo de "perguntei primeiro".

- Tá bem: eu acho que sim: em muitas ocasiões é possível bastar-se a si mesmo e SEM QUE isso seja narcisista, ou como querem muitos... narcísico.

- É o mesmo que eu penso. Acrescentaria que nessas "muitas ocasiões" incluem-se momentos que desconhecemos.

- Como assim? Como por exemplo, quando queremos a compamnhia de alguém e não a temos?

- Sim ou quando ACHAMOS que queremos a companhia de alguém. E aqui considero que "alguém" pode ser qualquer um... ou até mesmo aquele alguém especial, insubstituível...

- Você disse que ninguém é substituível!

- Sim e, simultaneamente, TODOS são substituíveis.

- Não faça parábolas dialógicas (ou, mais precisamente nesse caso) diabólicas...

- Você entendeu perfeitamente que, quem são substituidos, são os fragmentos plurais e/ou singulares que compõe aquela companhia... sensações do outro que não é o outro... em nós.

- Um deslocamento?

- Não: uma diferença!

- Seja mais claro!

- Você quer algo DE ALGUÉM  e não pode ter naquele momento (ou em momento algum!), então você tem algo de outro alguém (ou de si mesmo)... um fragmento. É uma diferença em relação ao original, mas é uma semelhança (ainda que diferente) do possível. 

- Você continua me fazendo pensar em deslocamento ou substituição.

- Mas não é como a vela que substitui a luz eletrica (e eu sei claramente que você percebe as diferentes sensações e climas e sentidos e efeitos que uma e outra despetam em você). é algo como ... quando você acende velas mesmo quando tem a luz elétrica, entendeu? Não é preciso "terminar a luz" ou desligá-la para acender velas...
É quando você ascende às velas!

- Muito enrolado, mas eu sei - e já vivi isso - que podemos nos bastar a nós próprios... mesmo quando queremos, necessitamos, precisamos do outro.

- Pois... cada uma dessas palavras que você usou, "queremos, necessitamos, precisamos" encerra em si uma complexidade sigular.
O grande paradoxo é que somos sós (ou estamos), embora não estejamos, pois SOMOS sempre acompanhados: essa solitude é povoada.
Mas, quando estamos - fisicamente - sozinhos e queremos a companhia - física, que pode ser só A Voz, por exemplo - do outro e não a temos, precisamos aprender a (com)viver com isso e viver sem isso... (risos)

- Sim, somos cheios de fragmentos e cheios de completudes. As vezes somos só nós próprios; noutras, só o outro. Mais frequentemente, ambos...

- Seja como for, podemos bastarmo-nos a nós próprios, mesmo sabendo que não podemos - jamais - prescindir do outro. E ainda tem mais uma coisa: é muito bom não ter que criar a vida (ela se cria e se faz por si só), ainda que estejamos constantemente criando-a... Mas... sentir-se responsável (ou ser responsabilizado) por tudo que a habita... é outro papo. Observar a vida enquanto se a vive é muito bom!
Esfriou. Vamos tomar um chocolate quente?

- Já! Sozinhos ou um na compamnhia do outro?

- Ambos, juntos e separados... 

- ( Risos) Certo!

(De "Conversas atômicas na Escola Superior de Magia. p. 2011)